“As Cadeias serão seguras, limpas, o bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circunstâncias, e natureza dos seus crimes.” (art.179, XXI, Constituição Política do Império do Brasil de 1824). O extermínio atroz de 99 pessoas que estavam presas em unidades prisionais de Manaus e Boa Vista nos primeiros 10 dias de 2017 escancara como o Estado Brasileiro despreza os seus próprios fundamentos, mesmo aqueles inscritos na sua “Certidão de Nascimento”, como intimamente era tratada a Constituição nas aulas do Prof. Carlos Ayres Britto. Assim, até que ocorra outra tragédia como a vivida pelos atletas da Chape, ou quem sabe quando a lava-jato voltar do recesso, a crise do sistema penitenciário brasileiro terá primazia na opinião pública – ou pelo menos na opinião publicada – e como consequência predominará na pauta governamental, ambas já assoberbadas pelas crises política, econômica, social, ética ... Por parte do Executivo, observou-se nos últimos dias uma verdadeira histeria diante da descoberta dessa “nova crise”, tamanha a profusão de medidas que essas 99 mortes causou, em que pese o fenecimento fosse a solução preferida por José Eduardo Cardozo (ministro da Justiça entre 2010 e 2016) que afirmou "entre passar anos num presídio brasileiro e perder a vida, eu talvez preferisse perder a vida". Como ápice dos projetos, o atual ministro da Justiça Alexandre de Moraes já cogita monitorar a visita de advogados de chefes de facções criminosas em presídios, inclusive por meio de gravações, o que lhe rendeu uma carta aberta do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, da qual é professor, e subscrita por dezenas de juristas e entidades de classe, pedindo sua renúncia. No âmbito do Poder Judiciário, a presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministra Carmen Lúcia, orientou os Tribunais de Justiça a fazerem na primeira instância um esforço concentrado para analisar a situação dos presos e na segunda instância um cronograma de julgamentos para apressá-los, esquecendo-se que em 2016, o próprio Supremo – tendo a ministra integrado a maioria – concluiu que a confirmação da condenação em segunda instância autoriza o início da execução, ou seja, o condenado deve ingressar no sistema penitenciário – que reconhece a ministra, está em situação de emergência – antes de exauri todas as possibilidades de recurso, em detrimento dos expressos termos do art.5º, LVII da Constituição de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em Sergipe, teremos a partir da próxima segunda-feira o retorno das audiências de custódia, infelizmente ainda limitadas à apresentação das pessoas presas em flagrante em Aracaju, São Cristóvão e Barras dos Coqueiros. Digo infelizmente porque dos 2.135 presos submetidos à audiência entre 01/10/15 e 24/11/16 (quando as audiências foram suspensas), 876 (41%) tiveram a prisão substituída por outras medidas cautelares – desses 614 (70%) assistidos pela Defensoria Pública –, com decisiva contribuição para a redução do encarceramento, sem prejuízo, vale frisar, da contenção da violência, pois do total de liberados apenas 8% voltou a ser preso, seja por descumprir as medidas impostas, seja por nova prisão em flagrante. A par de todas essas ações, oxalá as mazelas que assistimos nesse início de ano possam fazer a sociedade e os integrantes do sistema de Justiça enxergarem a perversidade do encarceramento, que promete ressocializar os presos, porém efetivamente ele pode conseguir tudo, menos melhorá-los, quando não os mata.
Ermelino Costa Cerqueira
(Mestre em Direito, Professor, Defensor Público Coordenador do Núcleo de Flagrante Delito e Presos Provisórios e Diretor-Presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado de Sergipe)